A Igreja celebra, anualmente, a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue do Senhor (Corpus Christi) na primeira quinta-feira após a Solenidade da Santíssima Trindade. Conforme a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos (2005, nº 160), do ponto de vista histórico, essa solenidade – estendida pelo Papa Urbano IV a toda a Igreja latina – resultou de dois importantes fatores: uma resposta de fé e de culto contra as doutrinas hereges sobre o mistério da presença real de Cristo na Eucaristia e um movimento de fervorosa devoção expressa pela piedade popular para com o supremo Sacramento do Altar.
Essa posição também é compartilhada por Bergamini (1994, p. 430) ao afirmar que a Festa de Corpus Christi é produto da devoção eucarística da Idade Média ocidental e surgiu para afirmar a fé da Igreja na presença real de Cristo na Eucaristia contra os erros de Berengário de Tours, sendo estendida a toda a Igreja pelo Papa Urbano IV, em 1264. Tem assim um forte caráter apologético, isto é, de defesa da fé católica em relação à Eucaristia, reforçando que a presença real de Cristo na Eucaristia continua mesmo depois do encerramento da Celebração da Missa em razão da transubstanciação – a substância do pão e do vinho é transformada no Corpo e Sangue de Cristo. Não se trata de uma simples representação simbólica ou de uma presença de natureza espiritual durante o ato litúrgico, cessando após o evento.
Antes da decisão pontifícia, a festa do Corpo de Deus (Corpus Domini) foi celebrada pela primeira vez na diocese de Liége, por causa dos esforços da Santa Juliana de Mont Cornillon. O Papa Urbano IV, cujo pontificado durou entre 29 de agosto ou 04 de setembro de 1261 a 02 de outubro de 1264, instituiu a Festa do Corpo de Cristo (Corpus Christi) por meio da Bula Transiturus de hoc mundo – publicada no dia 11 de agosto de 1264, em Orvieto. Nesta Bula, o Santo Padre faz uma explanação sobre os fundamentos bíblicos da Instituição da Eucaristia, destacando a presença de Cristo por meio deste Santíssimo Sacramento na Igreja até a consumação dos tempos. Faz um paralelo muito profundo entre a morte que entrou no mundo por meio do alimento proibido – rememorando o pecado original – e a vida que brota do Pão Eucarístico. O primeiro fruto trouxe a carga da morte, do mal, da doença; o Alimento Eucarístico, que é o próprio Salvador, nos restaura e nutre verdadeiramente para a Vida Eterna.
O Papa Urbano IV acentua também que, "embora este Sacramento Sagrado seja celebrado todos os dias no solene rito da Missa, não obstante cremos ser útil e digno que se celebre, ao menos uma vez no ano, uma festa mais solene, em especial para confundir e refutar a hostilidade dos hereges".
Para que essa Festa ganhasse um caráter de grande solenidade e os olhares de toda a Igreja se voltassem para o Santíssmo Sacramento, o Papa Urbano IV definiu: "Que cada ano, pois, seja celebrada uma festa especial e solene de tão grande Sacramento, além da comemoração cotidiana que já faz a Igreja, e estabelecemos um dia fixo para ela, a primeira quinta-feira depois da Oitava de Pentecostes. Também estabelecemos que no mesmo dia se reúnam para este fim nas Igrejas devotas multidões de fiéis, com generosidade e afeto, e todo o clero, e o povo, entoem alegres cantos de exaltação, que os lábios e os corações se encham de santa alegria; cante a fé, tremule a esperança, exulte a caridade; palpite a devoção, exulte a pureza; que os corações sejam sinceros; que todos se unam com ânimo diligente e pronta vontade, ocupando-se em preparar e celebrar esta festa. E queira o Céu que o fervor inflame as almas de todos os fiéis no serviço de Cristo, que por meio desta festa e outras obras de bem, aumentando cada vez mais seus méritos diante de Deus, depois desta vida, se dê Ele mesmo como prêmio a todos, pois para elas se ofereceu como alimento e como preço de resgate".
Quanto às heresias referentes à Eucaristia destaca-se a posição de Berengário de Tours (+ 1088), que tem como objetivo explicar a Eucaristia de forma racional. Segundo ele, o pão e o vinho não sofrem uma transformação pela consagração, mas uma mudança de significado, tornando-se símbolo, em sacramentum do Corpo e Sangue de Cristo e com isso em meio para estimular o espírito humano a se unir espiritualmente com o Cristo Total Celestial. Rejeita a presença real e a consagração, pois isso significaria fazer descer do céu o corpo de Cristo e sua multiplicação ou divisão, bem como a destruição da substância dos elementos (pão e vinho) depois da consagração, o que seria para Berengário algo impossível até para Deus (FEINER; LOEHRER, 1977, p. 49-50).
A heresia de Berengário foi condenada em numerosos sínodos: em 1050, nos sínodos de Roma e Vercelli; em 1051, em Paris; em 1054, num sínodo em Tours. Em 1059, no sínodo de Roma, assinou a fórmula composta pelo cardeal Humberto da Silva Candida; porém, afastou-se dela novamente, tendo que depor outra profissão de fé diante do Papa Gregório VII. A profissão de fé assinada por Berengário no Sínodo de Roma, em 1059, sob o pontificado do Papa Nicolau II, traduz a fé da Igreja na transubstanciação: "o pão e o vinho que são postos sobre o altar são, depois da consagração, [...] o verdadeiro Corpo e Sangue do Senhor nosso Jesus Cristo, que, de modo sensível, [...] é tocado e partido pelas mãos dos sacerdotes e mastigado pelos dentes dos fiéis" (DENZINGER; HÜNERMANN, 2007, 690).
Nos séculos XVI e XVII, essa solenidade foi reavivada também como reação contrária às negações do movimento protestante, que nega a transubstanciação – e a cultura moderna anti-cristã, possibilitando o surgimento de novas formas de piedade popular para com o Mistério Eucarístico (CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS, 2005, nº 160).
O culto ao Santíssimo Sacramento sempre foi incentivado e propagado pelo Sagrado Magistério da Igreja. Por exemplo, o Papa Paulo VI, na Carta Encíclica Mysterium Fidei sobre o culto da Sagrada Eucaristia, nº 58, afirma que a Igreja Católica sempre professou o culto de adoração ao Sacramento Eucarístico durante e fora da Missa, conservando as Hóstias consagradas, expondo-as para a solene veneração dos fiéis e levando-as em procissão aclamadas e saudadas com grande entusiasmo por grandes multidões.
Também a Sagrada Congregação dos Ritos, na Instrução sobre o culto do Mistério Eucarístico, nº 49, explica que a finalidade principal e originária da conservação da Eucaristia fora da Missa, é a administração do Viático (Comunhão eucarística para os fiéis que estão em situação de risco de morte – próximos da morte. A palavra vem do latim "via". Daí o sentido de ser o alimento ou provisão para a viagem. Cristo é o Caminho e, ao mesmo tempo, o Alimento Verdadeiro: o Pão da Vida, que fortalece o cristão em sua passagem dessa vida terrena, como garantia da ressurreição). Finalidades secundárias são a distribuição da Sagrada Comunhão fora da Missa e a adoração de Nosso Senhor Jesus Cristo sob as espécies do Pão e do Vinho consagrados. Em razão da conservação da Eucaristia para a comunhão dos doentes, a Igreja Católica assumiu o costume de adorar esse alimento saudável, demonstrando a fé na presença real do Senhor nas espécies eucarísticas mesmo fora da Missa.
A Instrução sobre o culto do Mistério Eucarístico, nº 59, acentua ainda que o povo cristão presta testemunho público de sua fé e devoção ao Santíssimo Sacramento da Eucaristia por meio das procissões, principalmente na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, quando a Eucaristia é levada com grande respeito e veneração.
Assim, a solene procissão realizada com grande entusiasmo e beleza – os tapetes e ornamentações nas residências – contém um significado extraordinário: a Igreja peregrina neste mundo adora o Senhor na Eucaristia, numa manifestação pública de fé no Senhor Ressuscitado, que se faz Alimento de Vida Eterna. Ao mesmo tempo, dá seguimento à realização plena daquilo que era figurado no Antigo Testamento, como tão bem expõe o belíssimo canto: "O Povo de Deus no deserto andava...". Também nós caminhamos tendo à frente Jesus Cristo, o Verdadeiro Pão do Céu, prefigurado no maná enviado por Deus para o seu povo que caminhava rumo à Terra Prometida neste mundo. Nós caminhamos hoje rumo ao Céu, sendo alimentados pelo próprio Deus com o Pão Eucarístico, o qual pedimos cotidianamente quando rezamos a Oração do Pai-Nosso: "O Pão nosso de cada dia nos dai hoje...". É o Pão Eucarístico que clamamos todas as vezes que recitamos com os lábios e com o coração essa Oração Modelo ensinada pelo próprio Mestre e Senhor Jesus Cristo.
Vitor Nunes Rosa
Professor universitário. Mestre em Educação
Especialista em filosofia. Especialista em administração escolar
Licenciado em Filosofia. Formado em Teologia
André Luiz de Góes Nunes
Advogado. Especialista em Direito do Trabalho
Acadêmico de Teologia
Coordenador do curso de teologia da Escola de Formação Fé e Vida
Referências:
BERGAMINI, A. Cristo, festa da Igreja: história, teologia, espiritualidade e pastoral do Ano Litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994. (Coleção Liturgia e Participação).
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre piedade popular e liturgia: princípios e orientações. São Paulo: Paulinas, 2003. (Coleção Documentos da Igreja).
DENZINGER, H.; HÜNERMANN, P. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2007.
FEINER, J.; LOEHRER, M. (Edit.). Mysterium Salutis. Compêndio de dogmática histórico-salvífica: Fundamentos de dogmática histórico-salvífica: A Igreja. Eucaristia: mistério central. Petrópolis: Vozes, 1977. Vol. IV. Tomo 5.
PAULO VI. Mysterium Fidei, Carta Encíclica sobre o culto da Sagrada Eucaristia. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2003. (Coleção A voz do Papa).
SAGRADA CONGREGAÇÃO DOS RITOS. Instrução sobre o culto do Mistério Eucarístico. 6. ed. São Paulo: Paulinas, 2006. (Coleção A voz do Papa).
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